“Ensino não deve viver em função de avaliações externas”
Especialista português em avaliação escolar defende equilíbrio entre provas aplicadas na escola e as que não fazem parte do processo pedagógico
Avaliações externas como a Prova Brasil – aplicada pelo governo federal na rede pública de educação básica – e o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) – prova trienal com alunos de 65 países – são realizadas para verificar o desenvolvimento das aprendizagens e do sistema de ensino. Apesar de utilizadas amplamente em muitos países, este tipo de avaliação pode estimular a organização do ensino quase exclusivamente em função das provas. “Isso não é positivo porque as provas não traduzem nunca a totalidade do currículo”, destaca o pesquisador português Domingos Fernandes em entrevista ao iG.Leia também
O treinamento para as avaliações externas, que não fazem parte do processo pedagógico, pode ser prejudicial à aprendizagem quando os sistemas educativos vivem em função delas. O professor acredita que é preciso “uma perspectiva avaliativa mais equilibrada entre as avaliações internas, aquelas que verdadeiramente podem ajudar os alunos a aprender, e as avaliações externas”.
Fernandes virá ao Brasil na próxima semana para participar do 18º Congresso Internacional de Educação (Educador), que será realizado no Centro de Exposições Imigrantes, em São Paulo, entre os dias 18 e 21 de maio. O tema da palestra do pesquisador será “Uma nova concepção de avaliação para que os alunos não percam o interesse pela escola”.
Leia a íntegra da entrevista concedida ao iG por email:
iG: O senhor acredita que o excesso de avaliações pode ser prejudicial aos alunos?
Domingos Fernandes: As avaliações externas, sem impacto no progresso acadêmico dos alunos, são utilizadas em muitos países do mundo. Embora os seus propósitos possam ser diferentes de país para país, elas são geralmente utilizadas como forma de regular as políticas públicas de educação e também como forma de verificar em que medida o currículo aprendido pelos alunos é congruente com o currículo proposto. O número de provas também varia sensivelmente. Penso que “o excesso de avaliações” externas, para utilizar a sua expressão, pode conduzir a um efeito ainda maior de “estreitamento do currículo”. Ou seja, pode desenvolver a tendência de organizar o ensino e a aprendizagem quase exclusivamente em função das provas e isso não é positivo porque os testes não traduzem nunca a totalidade do currículo.
Fernandes: Não estamos perante uma ciência exata. Penso que, na verdade, ninguém estará em condições de dizer qual é o número ideal de provas externas. Tudo isso depende das políticas, dos valores, das culturas e dos contextos de cada país. Mas não parece haver vantagens em inundar as escolas e as crianças com muitas provas. O que julgo ser importante é que os sistemas educativos se organizem cada vez melhor para que todos os alunos possam aprender. E isso exige um sistema de avaliação global, integrado e consistente.
Foto: Divulgação Ampliar
O pesquisador português Domingos Fernandes, especialista em avaliação escolar
iG: O iG apurou que algumas escolas públicas estaduais do Estado de São Paulo treinam os alunos, aplicando simulados, para que seus estudantes tenham boas pontuações, o que consequentemente avalia bem a escola. Essa prática distorce os resultados ou estimula os alunos a aprenderem mais?
Fernandes: Eu diria que a prática de “treinar” os alunos para responderem bem aos itens das provas externas é corrente em todos os países. De certo modo, pode compreender-se que assim seja. O problema é quando os sistemas educativos vivem em função das avaliações externas e quando não há uma perspectiva avaliativa mais equilibrada entre as avaliações internas, aquelas que verdadeiramente podem ajudar os alunos a aprender, e as avaliações externas que, como já referi, têm outro tipo de propósitos (por exemplo, selecionar e certificar os alunos; avaliar as escolas e os seus professores; informar e regular as políticas).
iG: Consequentes resultados negativos em avaliações de desempenho podem desestimular estudantes e professores, em vez de estimular?
Fernandes: Podem realmente ter esse tipo de efeito. Mas também podem ter o efeito contrário. Tudo depende dos contextos gerais e particulares em que as coisas ocorrem. Tudo depende muito da utilização que se dá aos resultados das avaliações. Tudo depende das políticas educativas mais gerais e também das políticas locais. Os resultados das pesquisas parecem indicar que os alunos com mais dificuldades tendem a desmotivar-se mais facilmente do que os chamados bons alunos. Em todo o caso, também parece que a forma como as escolas e as famílias agem junto aos alunos pode ajudá-los a lidar melhor com resultados menos positivos.
iG: O ensino médio brasileiro é considerado a pior etapa da educação brasileira. Os dados de abandono são alarmantes – apenas 50% dos matriculados concluem os três anos desta fase – e não há avanço na qualidade na última década. Um dos principais problemas diagnosticados é a falta de interesse dos jovens estudantes na escola. De que forma uma nova concepção de avaliação pode colaborar para que os alunos não percam o interesse pela escola?
Fernandes: A questão não se prende exclusivamente com a avaliação. Prende-se, antes do mais, com a forma como o sistema educativo, as escolas e os professores organizam o funcionamento pedagógico das instituições de educação e de formação. Esta é a questão mais essencial de todas. Que projeto político-pedagógico somos capazes de conceber e pôr em prática? Que tarefas selecionamos para que os alunos possam aprender com compreensão? Os alunos têm oportunidade para participar ativamente no desenvolvimento das suas aprendizagens? Em suma, como é que nós desenvolvemos o currículo em cada escola para que todos e cada um dos alunos possam ir tão longe quanto lhe permitem as suas capacidades, os seus interesses e as suas legítimas aspirações. A avaliação que se pratica nas salas de aula tem que ter um propósito fundamental que se sobrepõe a todos os outros: ela tem que estar ao serviço de quem precisa aprender. Neste sentido, a avaliação é um processo que tem que estar intimamente relacionado com o ensino e com a aprendizagem. Só dessa forma a avaliação é eminentemente pedagógica, podendo ajudar os alunos a melhorar a sua auto-estima e, consequentemente, a reconciliarem-se com a escola. Convém voltar a referir que nós precisamos é de novas e inovadoras formas de organizar o ensino articulando-o inteligentemente com a avaliação e com a aprendizagem.
iG: Em 2010, Portugal foi o país da OCDE que mais progrediu no Pisa, alcançando a 21ª posição. Quais políticas e fatores contribuíram para este desempenho?
Fernandes: Nos últimos anos puseram-se em prática programas e medidas de política nos domínios da matemática, das ciências experimentais e da língua portuguesa. Tais programas abrangeram os professores do ensino básico e implicaram um apoio muito próximo, inclusivamente dentro das salas de aula. Tem havido, no âmbito destes programas e medidas, uma articulação próxima entre as instituições do ensino superior e as escolas do ensino básico e os seus professores. O chamado Plano de Ação para a Matemática (PAM), por exemplo, envolve três componentes: Formação, Acompanhamento e Produção e Distribuição de Materiais de Apoio. Seria exaustivo estar a detalhar o que tem sido feito em cada um daqueles domínios mas a verdade é que, pela primeira vez em muitos anos, o Ministério da Educação de Portugal decidiu agir de forma continuada, persistente e apoiada para melhorar o ensino, a aprendizagem e avaliação naquelas disciplinas. Julgo que os professores, apoiados nas suas salas de aula e trabalhando mais cooperativa e colaborativamente uns com os outros, acabaram por começar a utilizar abordagens pedagógicas mais consentâneas com o que se poderia desejar. Talvez por isso se possa explicar, pelo menos em parte, o tipo de resultados que refere.
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